quarta-feira, fevereiro 07, 2007

POENTE

Frio! Como estava frio nessa noite...
Como ele sentia fria a sua existência.Vazia de sentido, pelo menos do sentido a que se habituara a dar às suas coisas...O modo de pensar que lhe haviam ensinado...
Era hora do regresso a casa, depois do passeio que usualmente costumava dar pela tardinha no jardim. A noite caíra depressa mas... a idade já não permitia a veleidade de andar muito rápido.
Pelo caminho ia, mais uma vez, pensando no que havia sido a sua vida, a nostalgia de tudo o que havia tido e gozado e já não tinha...Era forçado a admitir que quase sentia inveja dos mais novos e do que estes ainda podiam fazer, mas, no entanto, o seu coração dizia-lhe que isso estava errado .Mas doía... se doía.Era a vida injusta? Não sabia responder e no seu interior sentia duas respostas. Absurdo! Mas era o que sentia...
Pelo caminho passa por grupo de jovens que na estrada ainda brincam com uma bola. A mesma, de repente vem até aos seus pés e ele ouve:
-Velho! Passa a bola! Não ouves?
Ao ouvir isso ele pára. Volta-se para eles e num instante, quantas coisas lhe passam pela cabeça.
A revolta pela má educação, pela falta de consideração, pelo sentimento de exclusão... A vontade dele era...era... E sente lágrimas nos olhos.
Apodera-se dele um misto de raiva e de perdão, admirando-se ainda com o amor que de um modo suave sente brotar no seu coração...Será possível?
Um dos jovens vem até ele e pede-lhe a bola e, ao vê-lo de lágrimas nos olhos, fica por uns instantes desconcertado. O olhar de quem ainda não conhece a vida e o olhar de quem já quase a viveu.
-Toma.
O jovem recebe a bola olha-o mais uma vez e afasta-se
-Desculpe
Essa palavra aqueceu um pouco o seu coração. Pensou:
"O que ele sabe da vida?..."
Mas depois disto parece que ainda se sentiu mais longe dela... Ou seria mais consciente das ilusões que a mesma tinha? Será que a experiência lhe estava a mostrar a vida por outro prisma?...
Não tinha ele já tido a oportunidade que aquelas crianças estavam a ter?Aproveitara-a bem?
Neste momento já não sabia responder como queria a essa pergunta.Uma cálida sensação de paz e dever cumprido tomava conta do seu ser.
O frio cortava na sua pele e ao mesmo tempo na sua personalidade, deixando-o cada vez mais desnudo perante a realidade da sua vida.
"Vamos lá apertar o passo".
Nuvens passavam no céu e com elas... bocados da sua vida.
"Deus! Como tudo isto é ilusão. Porque só agora estou a tomar consciência disto?Agora parece tarde..."
Será?
Casa! Finalmente!
Ao entrar pensa em quantas vezes já repetira aquele gesto. Estranho pensamento esse...
Ao mesmo tempo sente que era a última vez que o fazia.
"Tolice! Mas... se for...Já estou pronto. Será o que Deus quiser!
Vivia sózinho e por um momento a situação quase o assustou mas...já estava assim havia alguns anos.Aqueles que amava já cá não estavam. Muito tinha chorado e sofrido com isso, mas a sua dignidade levara-o a esconder isso dos outros.
Aos poucos aprendera a aceitar a vida como ele era com um misto de resignação e de amor por essa mesma vida. Um amor mais desligado e desinteressado, por isso maios puro, por tudo o que o rodeava, tinha, devagar tomado conta do seu coração.Tinha aprendido com as lições que a vida lhe tinha dado. A revolta já tinha tido a seu tempo...
Como é escuro e ao mesmo tempo luminoso o fim de uma existência.
Era um homem ligado à vida espiritual, para além de qualquer religião.Aprendera a ser religioso ao seu modo. Aprendera a inspirar o amor do Pai e a expirar gratidão pelo mesmo.
A solidão da sua vida actual havia-lhe dado uma companhia interior como ele nunca sentira. Uma certeza e serenidade que só os pés lavados no sangue do coração conhecem...
Desejou que todos conseguissem ser assim na velhice e pediu a Deus por isso.
Enquanto se deitava perguntou a si mesmo se teria cumprido tudo o que podia na sua vida...
"Será que podia ter feito melhor'Claro!" Mas só agora o via...Quanto tempo perdido...
Ficou escutando o seu coração, como que esperando uma repreensão... Mas ela não veio.Já estava cansado para se recriminar. Ao invés disso sentiu uma espécie de perdão e de calor que advém de quem se sente perdoado e se perdoou a si mesmo.
O sono ia chegando e ele lembrou-se das crianças a jogar. Sorriu.
Lembrou-se do seu jogo na vida. Esperava que Deus aprovasse o seu jogo e lhe perdoasse as faltas cometidas no mesmo...
-Perdão...
-Deus...
"Adormeceu"...

Para todos os jovens velhos que pensam que toda a vida é deles e para todos os velhos jovens que pensam ter chegado ao fim do caminho.
Para todos um grande abraço e... joguem sempre pelas regras do coração!